Crónica de Mário de Sousa | Rebecca Npanzú

 

Crónica de Mário de Sousa
Rebecca Npanzú

 

Foi em 2010. O Sol perpendicular mostrava as horas como um relógio de pêndulo e queimava a paisagem. A cidade de S. Tomé dormitava, embalada pelo ar quente e húmido que subia da terra vermelha perfumando tudo.

O sítio era a entrada do Centro Cultural Português e as três da tarde a hora a que a Feira do Livro deveria abrir. Refugiado na sombra duma acácia fronteira, contemplava sem ver o outro lado da rua. Era aquela dormência do calor húmido dos trópicos equatoriais.

Uma figura feminina foi-se chegando à porta, leu o papel afixado na montra ao lado, olhou o relógio, encolheu os ombros e de forma lânguida recostou-se na ombreira da porta com ar resignado.

De estatura fina, quase elegante, digamos que magra, uma cara regular de mulata clara, ‘morena’ como é uso dizer-se, nariz um tudo nada arrebitado separando dois olhos escuros amendoados. Na cabeça, cingindo um cabelo levemente encarapinhado, um lenço justo arredondava-lhe o crânio. Lábios regulares desenhavam uma boca grande com dentes largos ligeiramente amarelados e emolduravam um sorriso beatífico, dirigido a ninguém.

Dos ombros magros pendia-lhe um vestido largo de pano de capulana, dum castanho claro desenhado a preto e amarelo. Era escorrido, escondendo-lhe as formas, apenas deixando adivinhar uns seios pequenos. Barriga da perna redonda, com tornozelo fino e torneado, findava num pé africano de planta larga, habituado às grandes caminhadas que estreitam as cinturas e ensinam a balançar as ancas.

Pendurado ao ombro, um saco de pano às ramagens e na mão direita, entre dedos compridos e finos, um cigarro meio ardido lançava no ar, em novelo, um fumo azulado. A idade, navegava em mar chão por alturas da viragem da maré. Entre os trinta e talvez poucos e os magníficos quarenta.

Atentei no seu sorriso, naquela indefinição idílica de quem se encontra em paz com tudo e com todos. Dei por mim a atravessar a rua. Parei ao seu lado e li o mesmo papel. Dizia que o evento começaria às 3 da tarde.

E ela então falou:

-‘Em África, tudo tem um tempo próprio. Não é ainda o tempo de abrir esta porta.’ E sorria, mas agora para mim.

– ‘Rebecca Npanzú’. Disse estendendo a mão mostrando os dedos adornados com dois anéis.

Apresentei-me também. Gosta de livros?

– ‘Tenho paixão’, respondeu ela de modo quase gutural.

Já não tenho paixões, reagi. Agora amo calmamente as coisas e nisso incluo os livros. Amo-lhes a textura, o cheiro, a impressão. Também gosto de algumas capas, da ‘Fenda’, por exemplo.

-‘Então gosta de poesia… !’

Não! Gosto dos poetas. As poesias são subprodutos.

-‘Isto está atrasado. O que faz?’

Sou engenheiro, ando por aí, por onde precisam de mim!

– ´’Sou escritora, disse ela, ou antes, vou ser quando em Novembro sair o meu primeiro livro. Até lá vou trabalhando nas Nações Unidas.’

Vem de onde? Perguntei.

– ‘Sou de Kandá, Nambuangongo, mas cresci e estudei em Luanda, agora toda a África é o meu trabalho. De quem gosta quando lê?’ perguntou…

De Eça, de Fialho, de Jorge Sena, de Kipling, de Faulkner, de Manuel Bandeira, de Harper Lee de tantos que já nem sei se gosto ou se me habituei a eles.

– ‘Gosto do charme do Século XIX. Nasci no Século errado’, sussurrou ela…

Tem graça, pensei, ao longo da vida, já confessei o mesmo, várias vezes!

A porta abriu. Entrámos, ela à frente e eu atrás. Ela foi escolhendo e eu, adormecido nas preferências dela, ia recolhendo exemplares do meu gosto… ou do dela, não sei bem. Tornei atrás e voltei a escolher! Passou o tempo, as mesas acabaram e voltámos a encontrar-nos na fila para o pagamento.

– ‘O que escolheste?’ perguntou ela.

Contos, alguma poesia e estes dois ensaios, respondi.

– ‘Escolheste bem eu também gosto. Vê os meus…’

Na rua, sacos de plástico na mão, paixão e amor saciados, despedimo-nos.

– ‘Adeus, gostei de te conhecer.’

Adeus, respondi eu. Nunca tinha conhecido ninguém com o teu nome. Adeus Rebecca até um dia…

E fiquei ali, a vê-la dissolver-se ao longe, nas volutas de calor daquela terra bendita.

 

Mafra, 3 de Março de 2022

Mário de Sousa

 

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One Thought to “Crónica de Mário de Sousa | Rebecca Npanzú”

  1. J. A. Marcos Serra

    Até eu fiquei com saudades de Rebecca. Com uma descrição destas, aonde foi possível disparar a imaginação!
    Que prosa linda!

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